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LÚCULO - CAPÍTULO 15


A memória do justo é abençoada [74]

Um espectador houve naquela cena de tortura e de morte cujo rosto, que experimentava a mais profunda agonia, sempre esteve fixo em Marcelo, cujos olhos foram olhos que viram cada um dos atos e expressões da vítima, e cujos ouvidos recolheram cada palavra. Longo tempo depois que todos tivessem partido, ele permanecia imóvel, sendo o único ser humano no enorme círculo de assentos vazios. Finalmente, se levantou para ir-se.
Longe estava dele a elasticidade característica de seus passos. Se deslocava com ar cabisbaixo e fraquíssimo; seu olhar de abstração e da dor de que ele todo estava embargado, o faziam aparecer como um que tivesse sido repentinamente vítima de uma doença mortal. Fez acenos a alguns dos guardas, que lhe abriram os portais que conduziam para a arena.
— Trazei-me para cá uma urna cinerária — disse ao pessoal que se achava nas imediações, ao mesmo tempo que se encaminhava até as brasas que já se extinguiam.
Uns quantos fragmentos de ossos carbonizados e feitos pó pela violência das chamas era tudo quanto restava do corpo de Marcelo.
Tomando silenciosamente a urna que lhe alcançou um dos guardas admirado, Lúculo começou a reunir todos os fragmentos humanos e o pó que pôde achar.
No momento em que estava saindo, se aproximou dele um ancião, diante do qual se deteve mecanicamente.
— O que desejas pedir-me? — lhe disse cortesmente.
— Meu nome é Honório. Sou um dos anciãos dos cristãos. Um amigo nosso muito querido foi sacrificado neste lugar esta noite, e eu venho confiando que se me permitirá recolher suas cinzas.
Lúculo lhe respondeu com afabilidade:
— É um acerto que tenhas te dirigido a mim, venerável mestre. Se tivesses descoberto teu nome a um outro, terias sido capturado imediatamente, porque está se oferecendo um resgate por você. Mas não posso te conceder o pedido que me fazes. Marcelo morreu, e suas escassas cinzas estão nesta urna. Serão depositadas num túmulo no mausoléu de minha família com todas as cerimônias de honra, porque ele foi meu mais querido amigo, e sua perda faz desta terra um deserto para mim, e do resto de minha vida a carga mais penosa.
Honório balbuciou com profundo entusiasmo:
— Compreendo que você não pode ser outro senão Lúculo, de quem sempre o ouvi falar com palavras de afeto.
— Eu sou. Jamais houve dois amigos mais leais que nós dois. Se tivesse sido possível, eu teria evitado o sacrifício. Jamais teria sido detido, se ele mesmo não se tivesse lançado nas mãos da lei, como o fez. Oh, destino inescrutável! Precisamente quando eu tinha tomado todas as disposições para que jamais pudesse ser capturado, mas ele em pessoa se enfrentou ao próprio imperador, e assim foi como u com minhas próprias mãos fui obrigado a conduzir o ser que mais amava à prisão e à morte.
— O que para você é perda, para ele é o ganho mais incomensurável [75]. Pois ingressou no reino de felicidade imortal.
Lúculo exclamou profundamente:
— Sua morte foi todo um triunfo. Eu observei antes a morte de muitos cristãos, mas não fui tão impressionado por sua esperança e confiança. Marcelo enfrentou a morte como se essa fosse a bênção mais feliz.
— Assim foi quanto a ele, como também o foi quanto a muitíssimos outros, cujos despojos jazem no infausto confinamento onde estamos obrigados a morar. A eles quero fazer chegar as cinzas de Marcelo. Não conviria que assim compartissem tumbas?
— Venerável Honório, eu havia abrigado a esperança, desde que meu amado amigo me deixou, que pelo menos teria o prazer de chorá-lo e de prodigalizar a seus despojos as últimas honras piedosas, e de derramar meu pranto sobre seu túmulo.
— Mas, oh nobre Lúculo, não teria preferido teu amigo que lhe fosse dada sepultura com as cerimônias simples de sua nova fé, e um lugar de repouso juntamente com os outros mártires com cujos nomes está ele relacionado para sempre?
Lúculo ficou possuído de um profundo silêncio, e depois de ter pensado por algum tempo, finalmente falou:
— Não cabe a menor dúvida quanto aos desejos dele. Eu me rindo diante deles, e me privo da honra de oferecer-lhe os ritos funerários. Leva-o, venerável Honório. Porém, permite-me que assista ao serviço de sepultamento. Não poderias consentir que um soldado, a quem conhecem somente como seu inimigo, ingresse nesse seu reino e presencie seus atos?
— Diante de ti nossas portas e corações se abrem no mais cordial recebimento, oh nobre Lúculo, como o foi com Marcelo antes que você, se por ventura recebesses entre nós a mesma bem-aventurança que lhe foi concedida a ele.
 — Não alimentes uma tal esperança — disse Lúculo— . Eu sou muito diferente de Marcelo em gostos e em sentimentos. Eu poderia aprender a sentir benevolência para com vocês, e ainda admirá-los, mas nunca poderia unir-me a vocês.
— Vem conosco, como seja, e presencia os serviços funerários de teu amigo. Um mensageiro virá por você amanhã.
Lúculo fez um sinal se assentimento, e depois de entregar-lhe a preciosa urna a Honório, se encaminhou tristemente para sua casa.
No dia seguinte, em companhia de um mensageiro, se dirigiu às catacumbas. Ali se encontrou com a comunidade dos cristãos e contemplou este lugar em que moravam, o qual já tinha sido lhe referido precisamente por seu amigo, tendo assim uma idéia prévia de sua vida, seus sofrimentos e seus afetos.
De novo as vozes dolentes e lamentações encheram as tenebrosas abóbadas e ecoaram por todos os intermináveis corredores, por outro irmão cujo pó se entregava ao pó do túmulo. Mas o mesmo pesar que falava da dor mortal foi substituído por uma sublime e inspirada certeza que expressava a fé da alma que aspira, e uma esperança plena de um desejo vivo de su amado Senhor.
Honório tomou em suas mãos o precioso rolo, as Palavras de vida, cujas promessas eram tão poderosas que sustentavam em meio das mais pesadas cargas e aflições, e em tom solene leu aquela parte de 1 Coríntios, que em todas as épocas e em todos os climas tem sido tão preciosa ao coração que se remonta além dos reinos do tempo em procura de consolo na perspectiva da ressurreição.
Seguidamente levantou sua cabeça e em tons fervorosos ofereceu uma oração ao Deus único e santo nos céus, em nome de Jesus Cristo, o divino Mediador, por quem a morte e a sepultura foram vencidas e assegurada a vida eterna.
O rosto pálido e triste de Lúculo era particularmente visível entre os dolentes. Embora ele não fosse cristão, contudo admirava tais doutrinas gloriosas, e escutava com reverência essas exaltadas esperanças. A ele foi concedido colocar as amadas cinzas dentro do lugar de repouso final; foram seu olhos os últimos que se pousaram naqueles despojos amados; suas mãos colocaram em seu lugar a pedra em que havia de gravar-se o nome e o epitáfio de Marcelo.
Lúculo voltou para sua casa, mas era um homem novo. Sua euforia pessoal parecia ter sido subjugada sob as severas aflições que havia sofrido.
Havia falado a verdade quando dissera que não era cristão. E embora a morte de seu amigo lhe houvesse embargado o coração de tristeza, não havia dor pelo pecado, nem arrependimento, nem anelo de conhecer o verdadeiro Deus vivente. Tinha perdido aquele habilidade de gozar-se no mundo, mas não havia conseguido nenhuma outra fonte de felicidade.
Porém a memória de seu amigo teve a virtude de produzir um efeito, sentiu uma profunda simpatia pelo pobre povo oprimido com quem Marcelo tinha confraternizado. Admirava sem compreender suas circunstâncias e os compadecia pelos imerecidos sofrimentos. Tinha consciência de que toda a virtude e bondade que pudessem ficar ainda em todo o império romano eram possuídas por esses coitados réprobos.
Foram esses sentimentos os que o levaram a prestar-lhes ajuda. Ofereceu-lhes a amizade e as promessas de auxílio que uma vez havia prodigalizado a Marcelo. Seus soldados não capturaram nenhum outro cristão, ou se o faziam, sempre se ouviria posteriormente que tinha escapado de algum modo inevitável. Sua alta posição, sua vasta riqueza, sua ilimitada influência, tudo estava ao serviço dos cristãos. Seu palácio chegou a ser bem conhecido deles, como seu mais seguro refúgio e lugar de ajuda, e seu nome gozava da honra de ser o mais poderoso de seus amigos humanos,
Mas todas as coisas chegam a seu fim, e assim também os sofrimentos dos cristãos e a amizade de Lúculo chegaram a seu término. Aproximadamente um ano após a morte de Marcelo, o severo imperador Décio foi destronado, e um outro assumiu o poder imperial. A perseguição cessou. A paz voltou às assembléias dos cristãos, e eles saíram das catacumbas para viver gozosos na saudável luz do dia. De novo podiam ouvir os seres humanos os louvores ao Deus e Redentor deles, e de novo reiniciaram sua interminável luta contra as hostes do mal.
Passaram os anos, e Lúculo não experimentou mudança alguma. Quando Honório saiu das catacumbas, foi levado por Lúculo a seu palácio, e morou sob seu amparo pelo resto de seus dias na terra. Ele se esforçou por pagar a dívida de gratidão a seu nobre benfeitor, fazendo-lhe conhecer toda a Verdade. Porém morreu sem ter podido desfrutar do gozo pelo que tanto tinha orado.
No final, a bênção chegou, mas depois de ter transcorrido muitos anos. quando já Lúculo se aproximava aos limites da velhice, chegou a ouvir a voz do Salvador. Mas longos anos tinham se passado desde que o mundo havia perdido seus encantos para ele. As riquezas, a honra, o poder já não o satisfaziam em absoluto. Sua vida se deslizava sob uma sombra de tristeza que ninguém podia curar. Mas o Espírito do Deus vivo chegou a apossar-se dele, e graças a sua divina mediação pôde por fim regozijar-se no amor do Salvador, de cuja obra sobre o coração humano tinha presenciado tantas e tão contundentes provas.
Longos séculos transcorreram sobre a cidade dos Césares, desde que a perseguição de Décio lançou os humildes seguidores de Jesus nas lôbregas e gélidas catacumbas. Tomemos a Via Ápia e vejamos o que nos ensina.
Diante de nós se estende a longa fileira de tumbas até a milionária cidade. Aqui os poderosos dessa Roma acharam um lugar de repouso, e ainda até ali levaram as pomposas mostras de quanto podem a riqueza, a glória do mundo e o poder. Embaixo de nós estão ocultas os rudes túmulos daqueles que em vida foram reprovados como indignos de respirar o ar livre sob o sol do céu.
Observai a mudança! Em volta nossa estão aqueles túmulos senhoriais todos em ruínas, sua santidade profanada, suas portas derrubadas e seu pó levado pelo vento. Os nomes daqueles que ali foram sepultados ninguém lembra; o império que fundaram caiu, as legiões que os conduziram a mil conquistas dormiram o sono do qual não despertarão até a segunda ressurreição.
Mas a memória dos perseguidos que jazem embaixo, a assembléia de Deus da terra contempla com revelação. Seus sepulcros foram convertidos em santuários de peregrinação; e essa obra na qual desempenharam eles um papel tão nobre, foi transmitida a nós para que a continuemos até que Jesus volte.
Humildes, depreciados, proscritos, afligidos, a fama se negou a assentar seus nomes nos rolos da história; contudo, e isto pelo menos sabemos bem, seus nomes estão escritos no Livro da Vida, e sua eterna comunhão será com aqueles de quem está escrito:

Estes são os que vieram da grande tribulação,
e lavaram as suas vestes
e as branquearam no sangue do Cordeiro.
Por isso estão diante do trono de Deus,
e o servem de dia e de noite no seu templo;
e aquele que está assentado sobre o trono
os cobrirá com a sua sombra.
Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede;
nem sol nem calma alguma cairá sobre eles.
Porque o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará,
e lhes servirá de guia para as fontes das águas da vida;
e Deus limpará de seus olhos toda a lágrima. [76]







[1] (N. da T.) Erro do original: os tigres são naturais da Ásia, e não da África.
[2] Esta perseguição pelo Imperador Décio foi desde o ano 249 ao 251 D.C., ou seja que durou por volta de dois anos e meio. Décio morreu em batalha com os godos, por volta de fins de 251 D.C. (Nota do original)
[3] Atos 10:1-2
[4] Apocalipse 15:3-4
[5] Apocalipse 21:3-4
[6] 1 Timóteo 3:16
[7] Filipenses 1:23
[8] Efésios 5:2
[9] Mateus 27:46, Marcos 15:34
[10] João 19:30
[11] Lucas 19:10
[12] Romanos 10:10
[13] Efésios 2:8-9
[14] Romanos 6:23
[15] João 5:24
[16] João 10:18
[17] Hebreus 11:13
[18] 1 Tessalonicenses 4:16-17
[19] 1 Coríntios 1:26
[20] Mateus 11:5
[21] Mateus 26:41, Marcos 14:38
[22] Apocalipse 1:8,11; 21:6; 22:13
[23] 2 Timóteo 4:8
[24] João 16:33
[25] Mateus 19:14; Marcos 10:14; Lucas 18:16
[26] 2 Coríntios 6:17
[27] 1 Coríntios 10:13
[28] Romanos 6:4
[29] Mateus 28:19
[30] Mateus 26:30, Marcos 14:26
[31] 2 Timóteo 3:12
[32] Tito 3:5
[33] Hebreus 11:25
[34] Apocalipse 18:2
[35] Apocalipse 18:5-6
[36] Apocalipse 18:7
[37] Apocalipse 18:8-10
[38] Apocalipse 18:15-20
[39] 1 Coríntios 15:52
[40] 1 Coríntios 15:52
[41] Hebreus 10:36
[42] Apocalipse 12:10-11
[43] Apocalipse 6:10
[44] Apocalipse 18:2,4
[45] Mateus 24:44; Lucas 12:40
[46] João 16:33a
[47] João 16:33b
[48] João 14:3
[49] Romanos 8:37
[50] Romanos 8:18
[51] Tiago 1:3
[52] Salmo 80:4-16
[53] Apocalipse 2:7
[54] Apocalipse 2:10
[55] Apocalipse 2:17
[56] Apocalipse 2:26,28
[57] Apocalipse 3:5
[58] Apocalipse 3:12
[59] Apocalipse 3:21
[60] 2 Coríntios 5:1
[61] João 15:13
[62] 2 Coríntios 4:8
[63] Filipenses 4:7
[64] Mateus 21:16; Salmo 8:2
[65] Apocalipse 2:10
[66] Apocalipse 6:10
[67] Apocalipse 1:7
[68] Apocalipse 16:5b:6a
[69] Apocalipse 16:6c-7b
[70] 1 Coríntios 15:55,57
[71] Mateus 4:9
[72] Lucas 12:8; Mateus 10:32
[73] Filipenses 1:23
[74] Provérbios 10:7
[75] Filipenses 3:7
[76] Apocalipse 7:14-17

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