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O ACAMPAMENTO PRETORIANO - CAPÍTULO 2

Cornélio, o centurião, varão justo e temeroso de Deus. [3]

Marcelo tinha nascido em Gades, e havia sido criado sob a férrea disciplina do exército romano. Tinha estado em destacamentos na África, na Síria e na Bretanha, e em todas partes havia-se distinguido, não somente por seu valor no campo de batalha, senão também por sua sagaz habilidade administrativa razões estas pelas quais tinha-se feito merecedor de honras e ascensões. Quando chegara a Roma, aonde vinha trazendo importantes mensagens, tinha agradado o Imperador de forma tal que o havia destinado para um posto honorário entre os pretorianos.
Lúculo, ao contrário, jamais tinha saído das fronteiras da Itália, apenas talvez da cidade. Pertencia a uma das mais antigas e nobres famílias romanas, e era, naturalmente, herdeiro de abundantes riquezas, com a correspondente influência que a essas acompanha. Tinha sido atraído pelo ousado e franco caráter de Marcelo, e sendo assim os dois jovens se converteram em firmes amigos. O conhecimento minucioso que da capital possuía Lúculo, lhe deparava a facilidade de servir seu amigo; e as cenas descritas no capítulo precedente foram uma das primeiras visitas que Marcelo fazia ao renomado Coliseu.
O acampamento pretoriano estava situado junto à muralha da cidade, à qual estava unido por outra muralha que o circundava. Os soldados viviam em quartos a modo de com celas perfuradas na mesma parede. Era um corpo integrado por numerosos homens cuidadosamente selecionados, e sua posição na capital lhes concedeu tal poder e influência que por muitas eras mantiveram o controle do governo da capital. Um posto de mando entre o pretoriano significava um caminho seguro para a fortuna, e Marcelo reunia todas as condições para que lhe fosse augurado um futuro pletórico de perspectivas e todas as honras que o favor do Imperador podia depará-lhe.
Na manhã do dia seguinte, Lúculo ingressou em seu quarto, e depois de ter trocado as saudações usuais e de confiança, começou a falar a respeito da luta que tinham presenciado.
Marcelo disse:
— Tais cenas não são das que em verdade me agrado. São atos de crassa covardia. A qualquer pode lhe comprazer ver dois homens bem treinados travar-se numa luta parelha e limpa; mas aquelas carnificinas que se vêem no Coliseu são detestáveis. Por que deviam matar Macer? Ele era um dos mais valentes dos homens, e eu tributo toda a minha homenagem à sua valentia inimitável. E por que deviam arrojar às feras selvagens àqueles anciãos e crianças?
— É que esses eram cristãos. E a lei sagrada é inquebrantável.
— Essa é a resposta de sempre. Que delito cometeram os cristãos? Eu me encontrei com eles por todas partes no império, mas jamais os vi entregues nem comprometidos sequer em perturbações ou coisa semelhante.
— Eles são o pior da humanidade.
— Essa é a acusação. Mas, que provas há?
-Provas? Que necessidade temos de provas, se sabemos até a saciedade o que são e fazem. Conspiram em segredo contra as leis e a religião de nosso estado. E tanta é a magnitude de seu ódio contra as instituições que eles preferem morrer antes que oferecer sacrifício. Não reconhecem rei nem monarca algum na terra, senão àquele judeu crucificado que eles insistem que vive atualmente. E tanta é sua malevolência para nós que chegam a afirmar que devemos ser torturados toda a nossa vida futura nos infernos.
— Tudo isso pode ser verdade. Disso não entendo nada. Respeito a eles não conheço nada.
— A cidade está atestada deles; o império foi invadido. E tem presente isto que te digo. A declinação de nosso amado império que vemos e lamentamos por todas partes, o fato de que se tenham difundido a debilidade e a insubordinação, a contração de nossas fronteiras; tudo isso aumenta conforme aumentam os cristãos. A quem mais se devem todos esses males, senão a eles?
— Como assim eles chegaram a originar isso tudo?
— Por meio de seus ensinos e práticas detestáveis. Eles ensinam que o pelejar é mau, que os soldados são os mais vis dos homens, que nossa gloriosa religião sob a qual prosperamos é uma maldição, que nossos deuses imortais não são senão demônios malditos. Em suas práticas privadas eles realizam os mais tenebrosos e imundos dos crimes. Eles sempre mantêm entre si o mais impenetrável segredo, mas as vezes temos chegado a escutar seus perniciosos discursos e seus impudicos cantos.
— Em verdade que, de ser isso assim, é algo sumamente grave e merecem o mais severo castigo. Mas, de acordo com tua própria declaração, eles mantêm o segredo entre eles, e portanto se sabe muito pouco deles. Dize-me, aqueles homens que sofreram o martírio ontem, tinham a aparência de tudo isso? Aquele ancião, tinha algo que demonstrasse que havia passado sua vida entre cenas de vício? Eram acaso obscenos os cantos que elevaram essas belíssimas moças enquanto esperavam ser devoradas pelos leões?

Ao que nos amou;
Ao que nos lavou de nossos pecados com seu sangue...

E Marcelo cantou em voz baixa e suave as palavras que tinha ouvido.
— Te confesso, amigo,que eu no fundo de minha alma lamentei a sorte deles.
Ao que Marcelo agregou:
— E eu teria chorado se não tivesse sido soldado romano. Detém-te um momento e reflexiona. Tu me dizes coisas a respeito dos cristãos que ao mesmo tempo confessas que somente sabes de ouvidos, de lábios daqueles que também ignoram o que dizem. Te atreves a afirmar que são infames e vis, o lixo da terra. Eu pessoalmente os contemplo quando afrontam a morte, que é a que prova as qualidades mais elevadas da alma. A enfrentam com nobreza, ao extremo de morrer alegremente. Roma em toda sua história não pode exibir um único exemplo de cena de maior devoção que a que presenciamos ontem. Tu dizes que eles detestam os soldados, mas são sobremodo valorosos; me dizes que eles são impuros, porém, se pode se dizer que existe pureza em toda a terra, correspondente às belíssimas donzelas que morreram ontem.
— Te entusiasmas excessivamente por aqueles párias.
— Não é mero entusiasmo, Lúculo. Eu desejo saber a verdade. Toda a minha vida tenho ouvido estas referências. Mas diante do que vi ontem juntamente contigo, pela primeira vez cheguei a suspeitar de sua veracidade. E agora te pergunto com todo meu empenho, e descubro que teu conhecimento não se fundamenta em nada. E hoje bem me lembro que estes cristãos por todo o mundo são pessoas pacificas e honestas a toda prova. Jamais tomam parte em levantamentos ou perturbações, e estou convencido que nenhum destes crimes que lhes são imputados poderá ser provado contra eles. Por que, então, são mortos?
— Porém o Imperador deve ter boas razões para tê-lo disposto assim.
— Bem pode ele ter sido instigado por conselheiros ignorantes ou maliciosos.
— Tenho entendido que é uma resolução tomada por ele mesmo.
— O número dos que foram entregues à morte dessa forma e pelo mesmo motivo é enorme.
— Ah, sim, são alguns milhares. Restam ainda muitos mais; mas é que não podem ser capturados. E precisamente isso me lembra a razão de minha presença aqui. Te trago a comissão imperial.
Lúculo extraiu das dobras de sua capa militar um rolo de pergaminho, o qual entregou a Marcelo. Este último examinou com avidez seu conteúdo. Era ascendido a um grau maior, ao mesmo tempo que ficava comissionado para buscar, perseguir e deter os cristãos onde fosse que estivessem ocultos, fazendo menção particular das catacumbas.
Marcelo leu preocupado e depois colocou o rolo de lado.
— Não pareces estar muito contente.
— Te confesso que a tarefa é desagradável. Sou um soldado e não gosto disso de andar à caça de velhos débeis e crianças para os carrascos. Porém, como soldado, devo obedecer. Fala-me algo acerca das catacumbas.
— As catacumbas? É um distrito subterrâneo que existe embaixo da cidade, e cujos limites ninguém conhece. Os cristãos fogem às catacumbas cada vez que se encontram em perigo; também estão já habituados a enterrar seus mortos ali. Uma vez que conseguem penetrar ali, podem-se considerar fora do alcance dos poderes do estado.
— Quem fez as catacumbas?
— Ninguém sabe com exatidão. O fato é que estiveram ali durante muitos séculos. Eu acredito que foram escavadas com o objeto de extrair areia para edificações. Pois na atualidade todo o nosso cimento provém dali, e poderás ver inumeráveis operários trazendo cimento à cidade por todos os caminhos. Na atualidade têm que ir até uma grande distância, porque com o transcurso dos anos foi escavado tanto sob a cidade que a deixaram sem fundamento.
— Existe alguma entrada regular?
— Existem inúmeras entradas. Precisamente essa é a dificuldade. Pois se existisse somente umas poucas, então poderíamos capturar os fugitivos. Porém, assim não podemos distinguir desde que direção devemos avançar sobre eles.
— Há algum distrito do qual se suspeita?
— Sim. Seguindo pela Via Ápia, umas duas milhas para a frente, perto do túmulo de Cecília Metella, a grande torre redonda que conheces, ali foram achados muitos cadáveres. Fazem-se conjecturas de que se trata dos corpos dos cristãos que foram resgatados do anfiteatro e levados para lá para dar-lhes sepultura. Ao se aproximarem os guardas os cristãos deixaram os cadáveres e fugiram. Mas, depois de tudo, isso não ajuda de muito, porque depois que alguém penetra nas catacumbas, não pode considerar que esteja mais perto do objetivo que antes. Não existe ser humano que possa penetrar naquele labirinto sem o auxílio daqueles que moram ali mesmo.
— Em mora ali?
— Os escavadores, que ainda se dedicam a cavar a terra em busca de areia para as construções. Quase todos eles são cristãos, e sempre estão ocupados em escavar tumbas para os cristãos que morrem. Esses homens viveram ali sua vida toda, e não somente pode se dizer que estão familiarizados com todas aquelas passagens, senão que têm uma espécie de intuito que os conduz.
— Entraste algumas vezes nas catacumbas, verdade?
— Uma vez, faz muito tempo, quando um escavador me acompanhou. Mas só permaneci ali um curto tempo. Deu-me a impressão de ser o lugar mais terrível que existe no mundo.
— Eu tenho ouvido falar das catacumbas, mas em realidade não sabia nada a respeito delas. É estranho que sejam tão pouco conhecidas. Não poderiam esses escavadores comprometer-se a guiar os guardas por todos esses labirintos?
— Não, eles não entregariam os cristãos.
— Mas, tentaram fazê-lo?
— Oh, sim. Alguns obedecem e guiam os oficiais da justiça através da rede de passagens, até que chega um momento em que quase perdem o sentido. As tochas quase extinguem, chegando eles a aterrorizar-se. E então pedem para voltar. O escavador expressa que os cristãos devem ter fugido, e assim volta o oficial ao ponto de partida.
— E ninguém tem a suficiente resolução de seguir até chegar a encontrar os cristãos?
— Se insistem em continuar a busca, os escavadores os conduzem até onde desejem. Mas o fazem pelas incontáveis passagens que interceptam alguns distritos particulares.
— E não foi achado nem um só que entregue os fugitivos?
— Sim, algumas vezes. Mas, de que serve? Ao primeiro sinal de alarme todos os cristãos desaparecem pelos condutos laterais que se abrem por toda parte.
— Minhas perspectivas de êxito parecem muito poucas.
— Poderão ser poucas, porém muita esperança está cifrada em tua ousadia e sagacidade. Pois se chegas a ter êxito nesta empresa que te é comissionada, terás assegurado a tua fortuna. E agora, boa sorte! Disse-te tudo o que sei. Não terás dificuldades em aprender muito mais de qualquer dos escavadores.
Assim falava Lúculo, enquanto ia embora. Marcelo escondeu o rosto entre as mãos, e sumiu-se em profundos pensamentos. Porém, na metade de sua meditação o perseguia, como envolvendo-o, as primeiras frases, cada vez mais penetrantes, daquela gloriosa melodia que evidenciava o triunfo sobre a morte: "Ao que nos amou. Ao que nos lavou de nossos pecados".

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