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A GRANDE NUVEM DE TESTEMUNHAS - CAPÍTULO 6

Todos estes morreram em fé. [17]

Não demorou o novo convertido em conhecer muito mais sobre os cristãos. Depois de um breve repouso, levantou-se e se reuniu com Honório, quem se ofereceu para mostrar-lhe aspectos do lugar onde moravam.
Pois aqueles a quem tinha visto no serviço da noite anterior, eram somente uma parte dos moradores das catacumbas. Seu número se elevava a muitos milhares, e estavam disseminados por sua vasta extensão em pequenas comunidades, cada uma das quais tinha seus próprios meios de comunicação com a cidade.
Assim foi que ele recorreu grande distância acompanhado por Honório. Se maravilhava sobremaneira do número de pessoas a quem encontrava; e embora soubesse que os cristãos eram numerosos, não imaginava sequer que tão vasta proporção dele tivesse o valor de escolher essa vida nas catacumbas.
Também não era seu interesse pelos mortos inferior àquele pelos vivos. Ao passar junto aos túmulos lia cuidadosamente as inscrições, e em todos eles descobria a mesma fé imperturbável e a sublime esperança. Deleitava-se lendo, e o devoto interesse que Honório prestava a estas piedosas memórias o convertia no mais simpático dos guias.
— Ali — disse Honório— repousa uma testemunha da verdade.
Marcelo olhou na direção que ele indicava e leu o seguinte:
"PRIMÍCIO, EM PAZ, DEPOIS DE MUITOS TORMENTOS, O MAIS VALENTE DOS MÁRTIRES. ELE VIVEU COMO TRINTA E OITO ANOS. ESTA É UMA LEMBRANÇA DE SUA ESPOSA Que AMAVA AO Que BEM MERECIA".
— Estes homens — disse Honório— nos ensinam como devem morrer os cristãos. Mais na frente há um outro, que também sofreu o mesmo que Primício.
"PAULO FOI MORTO SOFRENDO TORTURAS, A FIM DE QUE GOZASSE DAS ETERNAS BEM-AVENTURANÇAS".
— E lá — agregou o ancião— , está a tumba de uma nobre dama, quem mostrou uma fortaleza tal que somente Jesus Cristo pode conceder ao mais fraco de seus seguidores na hora da necessidade:
"CLEMÊNCIA, TORTURADA, REPOUSA. ELA RESSUSCITARÁ".
— Se fores chamado — disse Honório— a passar pelo artigo de morte, o espírito instantaneamente está "ausento do corpo e presente com o Senhor". A prometida volta de nosso Senhor, a qual pode acontecer a qualquer momento, constitui "a bendita esperança" dos cristãos doutrinados. "Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor" [18].
Honório continuou falando:
— Aqui repousa Constâncio, quem em duplo sentido foi constante a seu Deus mediante uma dupla prova. primeiro lhe deram veneno; mas como isso não fizesse nenhum efeito, foi morto a espada.
"O GOLE MORTAL NÃO SE ATREVEU A APRESENTAR A CONSTÂNCIO A COROA QUE SÓ AO AÇO FOI PERMITIDO OFERECÊ-LHE".
Assim caminharam ao longo das muralhas, lendo as inscrições que se apresentavam a ambos lados. Novos sentimentos assaltaram a Marcelo, conforme lia o glorioso catálogo de nomes. Para ele foi toda uma história da Igreja de Jesus Cristo. Aqui estavam os atos dos mártires expostos perante ele com palavras de fogo. Os rudes quadros que enfeitavam muitos dos sepulcros continham todo o sentimento que as mais belas obras dos hábeis artistas não poderiam produzir. As letras rudemente lavradas, a escritura e os erros gramaticais que caracterizavam a muitos deles, constituíam provas tangíveis dos tesouros do Evangelho para os pobres e humildes. "Não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados" [19], porém, "aos pobres é anunciado o evangelho" [20].
Em muitos deles havia um monograma, o qual era formado das letras iniciais dos títulos de Cristo ("Cristo o Senhor", em grego), as letras "X" e "P" unidas, formando um monograma. Algumas tinham uma palma, emblema da imortalidade e da vitória, o sinal daquelas palmas de glória que irão exibir em suas mãos os inumeráveis remidos que comparecerão perante o trono. Outras exibiam mais engenhosas e significativas inscrições.
— O que é isto? — interrompeu Marcelo, indicando um quando de um barco.
— Mostra que o espírito remido navega desde a terra até o repouso do céu.
— Que o que significa um peixe, que já vi várias vezes?
— Usamos o peixe porque as letras que formam seu nome em grego são as iniciais das palavras que expressam a glória e a esperança do cristão. O "I" representa "Jesus", o "X", Cristo; o "O" e o "U" representam o "Filho de Deus"; o "S", "Salvador"; é assim, pois, que o peixe simboliza em seu nome: "Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Salvador".
— O que é este outro quadro que também vi repetir-se, de um barco e um enorme mostro marinho?
— Esse é o Jonas, o profeta de Deus, de quem você até agora nada conhece.
Honório em seguida relatou a história de Jonas, e explicou como o escape dele do ventre do peixe lembrava e mostrava ao cristão sua redenção das trevas do sepulcro.
— Esta gloriosa esperança da ressurreição é um consolo inapreciável — disse ele— , e adoramos tê-lo presente por meio dos diferentes símbolos. Ali também há um símbolo da mesma abençoada verdade: a pomba levando a Noé o ramo de oliveira. — teve que relatar a Marcelo a história do dilúvio, a fim que aquele pudesse compreender o significado da representação— . Porém, de todos os símbolos que se usam, nenhum é tão claro como este — e indicou um quadro da ressurreição de Lázaro.
— Ali também — continuou Honório— está a âncora, símbolo da esperança pela qual os cristãos, enquanto atirados de um lado ao outro pelas implacáveis ondas da vida, se mantêm firmes rumo seu lar celestial.
"Lá pode ver o galo; é o símbolo da vigilância, porque o Senhor nos disse: "Vigiai e orai" [21]. Igualmente lá temos o cordeiro, símbolo da inocência e ternura, e ao mesmo tempo traz à nossa memória o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, que levou nossos pecados e por cujo sacrifício temos a vida eterna e o perdão. Ali novamente temos a pomba, que como o cordeiro, representa a inocência; e também outra vez lá, levando o ramo de oliveira, símbolo da paz.
"Lá estão as letras alfa e ômega, a primeira e a última do alfabeto grego, que representam a nosso Senhor, porque você já sabe que Ele disse: "Eu sou o Alfa e o Ômega" [22]. E também a coroa, que nos lembra essa coroa incorruptível que o Senhor, justo juiz, nos dará [23]. É assim como nos compraz rodear-nos com tudo o que nos aviva a lembrança do gozo que nos espera. Ensinados deste modo, olhamos desde este ambiente de tristeza e trevas, e graças a uma viva fé vemos sobre nós a luz da glória eterna".
— Aqui — disse Marcelo, detendo-se— , vejo algo que parece adaptar-se a minha condição. Parece realmente profético. Talvez eu também seja chamado a dar meu testemunho de Jesus Cristo. Oh, que eu seja achado fiel!
"EM CRISTO, NO TEMPO DO IMPERADOR ADRIANO, MÁRIO, UM JOVEM OFICIAL MILITAR, QUE VIVEU O SUFICIENTE, DERRAMOU SEU SANGUE POR CRISTO E MORREU EM PAZ. ESTE É UMA LEMBRANÇA DE SEUS AMIGOS COM LÁGRIMAS E TEMOR".
— "No mundo tereis tribulações; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo" [24]. Assim nos assegura Cristo; mas ao mesmo tempo que nos prevê contra o mal, nos consola com sua promessa de apóio. nEle achamos graça suficiente para nós.
— Que o exemplo do jovem oficial seja para mim — disse Marcelo— . Eu posso derramar meu sangue por Cristo Jesus igual que ele. Que eu morra igualmente fiel como ele! Morar aqui entre meus irmãos com epitáfio semelhante será a honra suprema, e não um mausoléu como o de Cecília Metella.
E desse modo continuaram caminhando.
Marcelo disse com entusiasmo:
— Quão doce é a morte do cristão! O horror da morte fugiu. Para ele se trata só de um sonho bem-aventurado, enquanto o espírito está com o Senhor esperando a ressurreição, e a morte, em vez de causar terror, está associada com pensamentos de vitória e repouso.
"O LUGAR DO SONO DE ELPIS".
"ZÓTICO JAZ AQUI DURMINDO".
"ASELO DORME EM CRISTO".
"MARTÍRIA DORME EM PAZ".
"VIDÁLIA, NA PAZ DE CRISTO".
"NICÈFORO, UMA ALMA DOCE, NO LUGAR DE REFRIGÉRIO".
— Algumas destas inscrições falam do caráter dos irmãos idos — disse, Honório— ; olha estas:
"MAXÍMIO, QUEM VIVEU VINTE E TRÊS ANOS, AMIGO DE TODOS OS HOMENS EM CRISTO".
"NAS QUINTAS CALENDAS DE NOVEMBRO, DURMIU GREGÔNIO, AMIGO DE TODOS E INIMIGO DE NINGUÉM".
— E aqui também — prosseguiu o ancião— , outras que nos falam de suas vidas privadas e de suas experiências domésticas:
"CECÍLIO, O ESPOSO, A CECÍLIA PLACINDA, MINHA ESPOSA DE EXCELSA MEMÓRIA, COM QUEM VIVI DEZ ANOS SEM NENHUMA DISCUSSÃO, EM CRISTO JESUS, FILHO DE DEUS, SALVADOR".
"CONSAGRADO A CRISTO, O DEUS SUPREMO, VITALI, ENTERRADA EM SÁBADO, CALENDAS DE AGOSTO. TINHA VINTE E CINCO ANOS E OITO MESES DE IDADE. VIVEU COM SEU ESPOSO DEZ ANOS E TRINTA DIAS. EM CRISTO, O PRIMEIRO E O ÚLTIMO".
"A DOMÍNIA, MINHA MUITO DOCE E INOCENTE ESPOSA, QUEM VIVEU DEZESSETE ANOS E QUATRO MESES E FOI CASADA DOIS ANOS, QUATRO MESES E NOVE DIAS. COM QUEM EU NÃO PUDE VIVER, POR CAUSA DE MINHAS VIAGENS, MAIS DE SEIS MESES, DURANTE AS QUAIS LHE MOSTREI MEU AMOR COMO O SENTIA. JAMAIS SE AMARAM TANTO OUTROS. ENTERRADA O DIA QUINZE, ANTES DAS CALENDAS DE JUNHO".
"A CLÁUDIO, AFETUOSO E DIGNO SER QUE ME AMOU, E VIVEU VINTE E CINCO ANOS EM CRISTO".
— Eis aqui o tributo de um pai amante — disse Marcelo ao ler o seguinte:
"LOURENÇO, A SEU DOCÍSSIMO Filho SEVERO. FOI LEVADO PELOS ANJOS NO SÉTIMO IDUS DE JANEIRO".
— E aqui tem um de uma esposa:
"DOMÍCIO EM PAZ, LEA FRÍGIO ESTÁ".
— Sim — disse Honório— , pela fé em Jesus Cristo (ou como tu costumas dizer, a "religião"), o crente recebe uma nova e divina natureza que lhe transmite o Espírito Santo, que ao mesmo tempo implanta o amor de Deus, o qual o faz susceptível aos mais delicados afetos para os amigos e relacionados. Ainda que seja verdade que permanece a natureza do antigo Adão, que não melhora, nem também não se pode.
Continuando seu recorrido, acharam muitos epitáfios mais que mostravam o doce amor pelos parentes mortos.
"CONSTÂNCIA, DE MARAVILHOSA BELEZA E AMABILIDADE, E QUE VIVEU DEZOITO ANOS E SEIS MESES COM DEZESSEIS DIAS,. CONSTÂNCIA EM PAS".
"SIMPLÍCIO, DE BOA E FELIZ MEMÓRIA, QUE VIVEU VINTE E TRÊS ANOS E QUARENTA E TRÊS DIAS EM PAS. ESTE MONUMENTO O FEZ SEU IRMÃO".
"A ADSERTOR, NOSSO FILHO, DOCE E QUERIDO, O MAIS INOCENTE E INCOMPARÁVEL, QUE VIVEU DEZESSETE ANOS E SEIS MESES COM OITO DIAS. LEMBRANÇA DE SEU PAI E DE SUA MÃE".
"A JANUÁRIO, DOCE E BOM FILHO, HONRADO E AMADO DE TODOS, QUE VIVEU VINTE E TRÊS ANOS, CINCO MESES E VINTE E DOIS DIAS".
"SEUS PAIS A LAURINA, MAIS DOCE QUE O MEL, DORME EM PAZ".
"À SANTA ALMA DE INOCENTE, QUE VIVEU COMO TRÊS ANOS".
"DOMICIANO, UMA ALMA INOCENTE, DORME EM PAZ".
"ADEUS, OH SABINA. ELA VIVEU OITO ANOS, OITO MESES E VINTE E DOIS DIAS. QUE VIVAS TÃO DOCEMENTE COM DEUS".
"EM CRISTO, MORREU O PRIMEIRO DE SETEMBRO, POMPEJANO O INOCENTE, QUEM VIVEU SEIS ANOS E NOVE MESES COM OITO DIAS E QUATRO HORAS. ELE DORME EM PAZ".
"A SEU DIGNÍSSIMO FILHO CALPÙRNIO, LEMBRANÇA DE SEUS PAIS: ELE VIVEU CINCO ANOS, OITO MESES E DEZ DIAS, E PARTIU EM PAZ O TREZE DE JUNHO".
— Ao epitáfio deste menino — disse Marcelo— , eles agregaram os símbolos de paz e glória.
Indicou o sepulcro de uma criança, sobre cuja pedra estavam desenhadas uma pomba e uma coroa de louros, juntamente com a seguinte inscrição:
"RESPECTO, QUEM VIVEU CINCO ANOS E OITO MESES, DORME EM PAZ".
E continuou falando Marcelo:
— E este tem uma palma, o símbolo da vitória.
— Sim — disse Honório— ; o Salvador disse: Deixai as crianças que venham a mim" [25].
Também atraíram sua atenção os epitáfios sobre os sepulcros das mulheres que tinham sido esposas de anciãos ministros cristãos:
"MINHA ESPOSA LAURENTINA ME FEZ ESTE SEPULCRO. ELA SEMPRE IDÔNEA A MINHA DISPOSIÇÃO, VENERÁVEL E FIEL".
"POR FIM FOI ESMAGADA A INVEJA. O BISPO LEON PASSOU SEU OCTOGÉSIMO ANO".
"O LUGAR DE BASÍLIO O PRESBÍTERO E SUA FELICITAS. ELES MESMOS SE PREPARARAM ESTE TÚMULO".
"A QUE FOI A FELIZ FILHA DO PRESBÍTERO GABINO. AQUI REPOUSA SUSANA, UNIDA EM PAZ COM SEU PAI".
"CLÁUDIO ATICIANO, LEITOR, E CLÁUDIA FELICÍSSIMA, SUA ESPOSA".
— Aqui se vê — disse Marcelo, um túmulo maior— . Há duas pessoas sepultadas aqui?
— Sim, é o que chamamos bisomum, pois dois ocupam esse túmulo. Lê a inscrição:
"O BISOMUM DE SABINO. ELE O FEZ PARA SI MESMO DURANTE SUA VIDA NO CEMITÉRIO DE BALBINA NA NOVA CRIPTA".
E Honório continuou dizendo:
— Algumas vezes se sepultam três num mesmo sepulcro. Em outros lugares você vai ver que um maior número foi sepultado num mesmo lugar; porque quando se agrava a perseguição, nem sempre existe a possibilidade de dedicar a cada pessoa a atenção devida separadamente, como desejaríamos. Mais para lá há uma placa que sinala o lugar de sepultura de muitos mártires, cujos nomes são desconhecidos, mas cujas memórias se abençoam.
E indicou uma pedra que tinha a seguinte inscrição:
"MARCELA E QUINHENTOS CINQÜENTA MÁRTIRES DE CRISTO".
— Aqui tem um mais longo — disse Marcelo, e suas palavras ecoarão nos corações de todos nós.
E leram o seguinte com a mais profunda emoção:
"EM CRISTO. ALESSANDRO NÃO ESTÁ MORTO, SENÃO QUE VIVE ALÉM DAS ESTRELAS, E SEU CORPO REPOUSA NESTE TÚMULO. ELE RENDEU SUA VIDA SOB O IMPERADOR ANTONINO, QUEM EMBORA PUDESSE TER PREVISTO QUE GRANDE BENEFÍCIO LHE RESULTARIA DE SEUS SERVIÇOS, SÓ LHE OFERECEU ÓDIO EM VEZ DE GRAÇA, PORQUE ENQUANTO ESTAVA SOBRE SEUS JOELHOS, JÁ PARA OFERECER SACRIFÍCIO AO DEUS VERDADEIRO, FOI TIRADO PARA SER EXECUTADO. OH, TEMPOS TRISTES AQUELES NOS QUAIS AINDA ENTRE OS RITOS E ORAÇÕES SAGRADAS, NEM AINDA NAS CAVERNAS PODÍAMOS ESTAR SEGUROS! O QUE PODE SER MAIS MISERÁVEL QUE UMA VIDA TAL? E QUE MORTE PIOR QUE AQUELA EM QUE NÃO PODEM NEM SEQUER SER SEPULTADOS PELOS AMIGOS E PARENTES? NO FIM ELES BRILHAM NO CÉU. APENAS VIVEU QUEM VIVEU EM TEMPOS CRISTÃOS".
— Este — disse Honório— é lugar de repouso de um irmão bem-amado, cuja memória ainda se recorda com carinho entre as igrejas todas. Em volta desta tumba viemos celebrar uma festa de amor no aniversário de seu nascimento. Pois nesta festa são demolidas todas as barreiras das diferentes categorias sociais e classes e tribos e línguas e povos. Nós todos somos irmãos em Cristo Jesus, porque lembramos que como Cristo nos amou, assim também devemos amar-nos uns aos outros.
Neste recorrido, Marcelo teve ampla oportunidade de verificar por si mesmo a presença daquele fraternal amor ao qual aludia Honório. Encontrou homens, mulheres e crianças de toda classe e de toda idade. Homens que haviam ocupado os mais elevados postos na Roma, se associavam em amigável comunhão com aqueles que apenas estavam no nível dos escravos; ainda aqueles que antes tinham sido cruéis e implacáveis perseguidores, agora se ajuntavam em comunhão de amor que aqueles que antes foram objeto de seu ódio mortal. Igualmente, o sacerdote judeu, liberado do jugo da Lei, que não podia cumprir e que era "ministério de morte" para ele, agora caminhava de mãos dadas com os gentios que antes odiava. O grego havia chegado a descobrir na "loucura" do Evangelho a mesma sabedoria infinita. E o desprezo que antes tinha sentido pelos seguidores de Jesus havia cedido espaço ao afeto mais afetuoso. O egoísmo e a ambição, o orgulho e a inveja, todas as baixas paixões da vida humana pareciam ter-se esfumado perante o poder ilimitado do amor cristão. A fé em Cristo Jesus morava em seus corações em toda sua plenitude, e sua bendita influência via-se aqui, como não era possível vê-la em nenhuma outra ocasião; não porque sua natureza e seu poder tivessem sido mudados por eles, pessoal e intencionalmente, senão porque a perseguição universal havia alcançado a todos por igual e os havia privado de suas possessões terrenas, separando-os das tentações e ambições mundanas; e pelo amor de Cristo que constrange, e pela suprema simpatia que engendra o sofrimento em comum, tinha a virtude de uni-los uns aos outros.
— A adoração ao Deus verdadeiro — disse Honório— difere de toda falsa adoração. Os pagãos devem entrar em seus templos e ali, por meio de um sacerdote, igualmente pecador como todos, oferecer uma e outra vez sacrifícios aos demônios, que obviamente jamais podem liberar a ninguém de seus pecados. Contudo Cristo se ofereceu uma só vez por todos nós, sem mácula perante Deus, o Sacrifício único feito uma única vez e para sempre. E cada um de seus seguidores pode agora se aproximar a Deus por meio de Jesus Cristo, nosso bendito e santíssimo Sumo Sacerdote nos próprios céus, sendo assim cada crente constituído rei e sacerdote por Jesus Cristo, para Deus. por conseguinte, para nós não é questão de tempo ou espaço, no que diz respeito à adoração; já seja que nos deixem em nossas capelas, ou que nos proscrevam completamente delas e de toda a terra. Pois oração eu é o trono de nosso Deus, e o universo é seu templo, e qualquer de seus filhos pode elevar a Ele sua voz desde o lugar onde se encontre, qualquer que seja, e em qualquer momento, e adorar ao Pai.
A travessia de Marcelo se estendeu até uma grande distância e por longo tempo. Pese a ter sido prevenido desta extensão, se maravilhava ao ver por si mesmo o enorme que era. Nem a metade haviam-lhe dito; e embora tivesse recorrido tanto, era fácil compreender que todo isso era somente uma fração da enorme extensão.
A altura média dos corredores era como de uns dois metros e meio; porém em muitos lugares se elevava até uns quatro metros, ou ainda cinco. Depois, as freqüentes capelas e salões que haviam formado ampliando os arcos, davam maior espaço aos habitantes, e lhes possibilitava viver e deslocar-se por maiores espaços e com mais liberdade. Também em muitos lugares havia aberturas no teto, através das quais penetravam débeis raios de luz do exterior. Estes eram escolhidos como lugares de reunião, mas não para viver. A existência da bendita luz do dia, por fraca que fosse, agradava tanto que era impossível de expressar, servindo por uns instantes brevíssimos para mitigar a tenebrosidade circundante.
Marcelo viu alguns lugares que tinham sido amuralhados, formando terminações abruptas do corredor, mas se abriam outras espécies de ramais que contornavam o lugar, e depois se prolongavam como anteriormente.
— O que é isso que se encerra assim? — perguntou.
— É uma grande tumba romana — disse Honório— . Ao escavar este corredor, os operários deram contra ela, e assim foi que pararam de escavar e contornaram o lugar, amuralhando-a previamente. Isso não foi, naturalmente, por temor a perturbar o túmulo, senão porque tanto na morte como na vida igualmente, o cristão deseja seguir o mandamento do Senhor que diz: "saí vós do meio deles e separai-vos" [26].
— A perseguição se enfurece contra nós e nos rodeia e nos encerra — disse Marcelo— . Quanto tempo será perseguido o povo de Deus? quanto tempo vai nos afligir o inimigo?
Honório respondeu:
— Tal é o clamor de muitos entre nós. Mas não é bom se queixar. O Senhor tem sido benigno com seu povo. Pois durante todo o Império passaram muitas gerações sob a proteção das leis e sem serem incomodados. É verdade que tivemos perseguições terríveis, nas quais milhares morreram em agonia, contudo sempre acabaram e deixaram em paz a Igreja.
— Todas as perseguições que até o momento recebemos serviram para purificar os corações do povo de Deus e para exaltar sua fé. Ele sabe o que é melhor para nós. Estamos em suas mãos, e Ele não nos dará carga maior da que podemos suportar [27]. Sejamos sóbrios e vigiemos em oração, oh, estimado Marcelo, porque a presente tormenta nos diz claramente que o dia grande e terrível, tanto tempo antes profetizado sobre o mundo, se aproxima.
E assim Marcelo seguiu andando em companhia de Honório, conversando e aprendendo a cada instante novas coisas da doutrina da verdade de Deus e as experiências de seu povo. E as evidências de seu amor, sua pureza, sua fortaleza, sua fé inquebrantável, penetraram nas profundezas de sua alma.
A experiência que ele mesmo tinha desfrutado não era transitória. Cada coisa nova que contemplava não fazia senão avivar nele o vivo anseio de unir-se com a fé e a sorte do povo de Deus. e em harmonia com esse sentir, antes do seguinte Dia do Senhor, se batizou "na morte de Cristo" [28], no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo [29].
Na manhã do Dia do Senhor, sentou-se em volta da Mesa do Senhor, em companhia dos outros cristãos. Ali todos eles celebraram aquela simples mas afetuosa festa em memória da Ceia do Senhor, pela qual os cristãos se proclamavam mortos com Jesus, enquanto esperavam seu regresso. Honório elevou a oferta de uma oração em ação de graças pelo que partilhavam. E pela primeira vez Marcelo gozou da participação do pão e do vinho, aqueles símbolos sacratíssimos do corpo e do sangue de seu Senhor crucificado por ele.
E, tendo cantado um hino, saíram. [30]

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